A História da Besta Que Se Alimentava De Poesia

1
Um acordar que adormecia a cada respirar,
Numa madrugada sem luz para me encontrar,
Caíram-me os olhos quando viram a sua lógica,
Anteriormente construída em exercícios perfeitos,
Agora derrotada por um vulto de frágil mão ao peito.

Apresentou-me às suas filhas: fome e saudade,
Duas embaixadoras de uma frágil mortalidade,
E perguntou-me por onde tenho andado.

“Pois, por aqui”, contestei sem embelezamento,
Já que sinto que nunca ando,
Mas que nunca tenho alento.

2
“E que tal te sais, deixando-me morrer assim?”,
Era uma voz sem vida, sem morte, sem frenesim,
Eram palavras que navegavam pela minha cabeça,
Naufragas, pois o que penso nunca tem fim,
E tudo o que me é dito, perde-se em mim.

Pedi que se explicasse melhor, o estranho visitante,
Pois um pobre poeta não conhece o bastante
Para adivinhar sentidos em frases, quando não os há.

“Poeta?!” pensei ouvir gritar para toda cidade,
“Matas-me a mim e a toda a tua dignidade,
Se semeias uma palavra e te chamas poeta!”

3
Cambaleava eu agora pela casa que se espreguiçava,
Para encontrar as palavras que a vida me ensinava,
Escritas em pedaços de papel que nunca sabia onde pôr.
Mas um poeta não é nada mais que ter muito a dizer,
Ser ignorado e, ainda assim, não ter mais onde escrever.

“Por acaso, alimentai-vos daquilo que já te deste de comer?”
Apontava-me o dedo com a culpa, sem me deixar responder,
“Não me alimentes de poesia que já digeriste e perdeste.”

A mensagem estava clara e também estavam as paredes,
Vi de súbito um espaço em branco onde pintar palavras dementes,
Um verso completo e dei-lhe à besta nutrição,
Foi chatear outro poeta sem qualquer inspiração. 

F.  Miguens